quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

O celeiro da casa Roca (post dedicado)

(Diz-lhe um bom crítico que não abuse dos adjectivos. Diz-lhe o bom senso que não use palavras para aquilo em que não são precisas. Teimoso, o Reboliço usa-as precisamente quando não fazem falta. Não conhece a contenção, nem em tempo de crise - ainda lhe há-de custar o pêlo, mas o gosto da língua com que se lambe não morre depressa. Ou, como diria Alan Shore a Denny Crane, também sem precisar de lho dizer, Live big, my friend. Live big.)
 
Há uns dias abalou para terras remotas e, quando deu por si, estava a uma mesa, toalha branca e três pedras cinzentas no centro encostadas umas às outras. Nada de tempo depois, no lugar das pedras apareceu, como se tivesse nascido ali de repente, uma oliveira anã: dos ramos dela penderam dez azeitonas caramelizadas, recheadas de anchova. O Reboliço colheu cada uma das duas que lhe calharam, mordeu-lhes a pele, virente pele, por baixo do caramelo - só doce o suficiente para ser tarrincado e se dar por ele -, apaladou o peixe escuro, foi engolindo devagar. Pensava que não era aquele um sítio para se lembrar da comida de casa: ali faziam coisas como gelificar, reduzir, emulsionar. E pur... as azeitonas, o primeiro sabor que lhe tocava na tabela do jantar, eram azeitonas conhecidas e boas.
Quando lhe puseram à frente uns rectângulos de lenho, retalhos de rede de pesca por cima a dar cama a espinhas de anchova (espinhas!) em polme de tempura de arroz, franziu o focinho. Que as comessem a Misha e a Pelota, que era lá isso de espinhas! Nada - foi-se o focinho desfranzindo, o faro aguçando, mais a curiosidade, não tardou a pegar no petisco e a deliciar-se. Ao seu lado, atrás de si, sempre aparecido não se sabia de onde, o sardo Davide, de serviço à mesa, falava, falava, falava... Contava de como aquela língua castelhana em que falava não era a sua, nem essa nem a catalã; que nem sequer o italiano era a sua língua - que a sua língua era o sardo. "E sabes, Reboliço, 'Sardenha' quer dizer 'a terra dos filhos das estrelas,'" contava, de olhos a brilhar como os astros do céu, enquanto trazia as magias dos Roca. Vestiu mesmo casaco de mágico, cartola e varinha, quando trouxe os bombons Bellini, de cava rosa com o tradicional licor de pêssego e pedacinhos de folha de ouro no topo: "Não percam tempo a admirar as esferas cor-de-rosa, que dentro de uns segundos elas desaparecerão, na vossa boca ou fora dela." Nhac!, fez o Reboliço, abrindo a boca e fechando os olhos. Nhac!, fez a bola de licores e bolhas da cava entre a língua, o céu, as paredes da boca toda. "Ofertas da casa," ia dizendo Davide. Pois sim, oferendas. Canções de sereias, silvos de serpentes.
Veio uma panela meio de louça meio de metal, com tampa que aberta mostrou um vapor de cheiro a nabo. Cheirava ao cozido de casa, mas trazia na parte de metal, sobre um reticulado miúdo, uma cestinha feita de massa de trigo, encerrada em brioche onde se escondia a trufa negra, presumida a fumegar. Não durou nada, nem o caldo de legumes e vitela que servira o vapor para amaciar a bola de farinha.
Já os risos iam altos, as maçãs dos rostos a encarnarem ideias amorosas, quando chegaram, dentro de colheres de cabo torcido, uns óvulos de amarelo-escuro que o sardo apresentou como tortilhas de caviar. O V., saído de dez dias de festival gastronómico e difícil de contentar, já se rendera às surpresas: forma, cor, cheiro, remoinhava tudo e tudo se entranhava nas papilas em muitos pensamentos de bondade e prazer. A G. posava para um retrato quase erótico, só olhos fechados e mais nada, e o Reboliço ganhava medo - como diabo se escreverá isto?
É que as palavras das conversas iam ficando escassas. Repetiam-se adjectivos, os temidos, os temíveis. Vinha com a tortilha de caviar um parfait de pombo com pinhões, xerez e pão de especiarias, vinha, a mais pedidos, o pastel folhado de azeitonas; vinham, dentro do vidro cortado ao meio de garrafas de Kripta, as ostras - estreia do M. nas ostras -, com a estranha folha que sabe ao marisco, mais batata verde, gengibre, tudo  coberto com cava, lá está, gelificadinha como manda a sapatilha gourmet e como ganhou o título de prato do ano em 2006. Veio um royal de chip de alcachofras com foie em azeite de alcachofra e redução, lá está, de sumo de clementina. O Reboliço viajava pelos sons das palavras não menos que pelos sabores, queria lá saber de escrever. O sardo falava, falava, falava, prestava-se aos retratos, amigável, pois não...
O linguado selvagem, a la brasa amb sabors del Mediterrani, foi prato de 2009. Os sabores do Mediterrâneo eram cinco emulsões que vinham em mancha no prato a ladear à esquerda o lombo do peixe. O sardo Davide ensinava que se comesse o linguado acompanhado de cada emulsão, partindo de baixo para cima, sempre a subir no prato e no céu da boca. Uma era de funcho e trazia dele uma minúscula folha fininha; a segunda era de bergamota e vinha enfeitada com uma pétala, pequenina, de flor de jasmim; a do meio era de laranja e no meio dela vinham pedacinhos da casca; a penúltima era de pinhão e lá trazia um pinhãozinho quebrado; a excelsa, de azeite de azeitona verde, tinha no meio uma lágrima caramelizada, uma esfera transparente, um caramelo, muito redondamente gelificado, de azeite. O Reboliço já não cabia em si e não era só de contente. Ficava-lhe curta a pele para tanto gosto.
Veio a seguir a escudella de bacalá. Foi prato do ano em 1998 e não se lhe notou nenhuma ruga. A escudela, que se refere ao recipiente pobre em que por tradição se preparava um caldo de carne e enchidos de porco, é como a cataplana: deixou de ser continente, passou a ser conteúdo. Dizia o sardo que o bacalhau nem sequer é grande invenção para a escudela: que nas casas mais remendadas da Catalunha a preparavam com o que houvesse, e se o que havia era o peixe da salga era esse que entrava na panela (por uma ordem certa, como ensina a tia de Concha em Pedra de Tartera). No Celler ajeitaram a coisa como se fosse à pobre: bacalhau e gnocchi de batata, pedacinhos da tripa do que nem é carne nem é peixe, mais uma emulsão, pois é, das espinhas do bicho (que fixação!, pensa o Reboliço, e faz uma reza à lembrança das gatas).
Fora do menu, escolhido pelo V. e pelo M., o bife tártaro com gelado de mostarda foi o pico da noite, no bom e no mau sentido - foi o que introduziu "excessivo" na lista, e não estragou a refeição porque veio pela cobiça do cliente mais do que pela ambição do cozinheiro. O Reboliço sonha ainda com a carnica em sangue, a ternura da sem nervos, a vermelha maravilha temperada: acompanhava de vários molhos e o sardo Davide lembrou o ritual de comer de baixo para cima, da parte mais próxima do prato até à que se virava para o centro da mesa. O primeiro, o molho béarnaise; a seguir, um de tomate temperado com especiarias e uma compota já não se lembra de que fruta; o outro, de praline de avelãs e passas recheadas de xerez oleroso; o último, de geladinhos de mostarda com as folhas da erva. Sobre a carne, apareciam uns pufes, coisa inchada de batata com sabores a cebolinho e a caril. Entre outros, que não escondiam nem por um segundo o gosto do bife. Mais carne veio depois, um cochinillo que o sardo descreveu como tendo sido cozido a baixa temperatura nos seus sucos, com melão e cebolinho. Tinha um perfume de carne fumada, a pele crocante e a capacidade de ficar na memória da língua até ao fim da vida de um cão.
Reboliço, Reboliço, que fartura... E os líquidos, para não embaçar? Houve líquidos - terminaram num chá de hortelã de agradecer a algum espírito da terra que faz crescer tais ervas. Começaram num cava das caves de Agustí Torelló Mata (a mesma marca do Kripta que inundou as ostras), foram por um Ferrer Bobet branco, néctar do Priorado, de 2007; o tinto era o Terra Remota de 2008 e para as sobremesas, para terminar em bom, o bom sardo Davide trouxe um luso Taylor Fladgate, Late Bottled Vintage, de 1995.
O Reboliço foi ficando tonto e não era só da bebida: bom nefelibata que é, serviram-lhe uma nuvem de limão, sonho de leite gelado com chantilly de limão, baunilha, manteiga de avelã e granizado de casca de limão. Nuvens de limão, nuvens de limão, nuvens de limão...
Antes dos bombons que fecharam e do chá, veio para a mesa aquilo a que o sardo chamou a desconstrução da baunilha: soube o Reboliço que os seus quatro sabores básicos são o caramelo, a regalessia (coisa que, em rebuçados licorices, abomina!), o cacau e as  azeitonas pretas. Foi uma baunilha doce e salgada ao mesmo tempo, que, apesar da barriguinha cheia, do satisfeito que estava, fez lembrar ao canito regalado o bonsai do início da noite e o fez querer que tudo começasse outra vez.

(Foto e hip-fotos: Reboliço. O Reboliço viajou com o apoio da G., da M. e do R., da  M. J. e do F.; ficou alojado com o apoio do I., do M., do H., da M. e da P.; assistiu a Pedra de Tartera, versão de Marc Rosich para o TNC, com o apoio do I. e do M.. Por isso tudo, por muito mais, está agradecido.)