terça-feira, 11 de abril de 2017

Moinhos na poesia (82)

RECORDAÇÃO

O Nordeste sopra,
O mais querido entre os ventos
Pra mim, pois promete fogoso
Espírito e boa viagem aos navegantes.
Vai pois agora e saúda
O belo Garona,
E os jardins de Bordéus
Ali onde na margem escarpada
Segue o atalho e para o rio
Lá baixo cai o regato, enquanto em cima
Contempla um nobre par
De carvalhos e choupos argênteos;


Ainda me lembro bem, e como
Inclina os largos cumes
O bosque de olmos, por sobre o moinho,
Enquanto no pátio cresce uma figueira.
Em dias de festa vão
As mulheres morenas por ali
Em chão de seda,
No mês de Março,
Quando a noite é igual ao dia,
E por sobre os atalhos vagarosos,
Pesadas de sonhos dourados,
Passam brisas embaladoras.


Mas que me dê,
Cheia de luz escura,
Alguém a taça cheirosa,
Que eu possa repousar; pois doce
Seria entre sombras o sono.
Não é porém bom
Sem alma ser de mortais
Pensamentos. Mas é bom
Conversar e dizer
O que vai no coração, ouvir muito
De dias de amor,
E de acções que acontecem.


Mas onde estão os amigos? Belarmino
Com o companheiro? Muitos
Têm receio de ir à fonte;
Pois é no mar que começa
A riqueza. eles,
Como pintores, ajuntam
O belo da Terra e não desdenham
A guerra alada, e
Viver solitário, anos a fio, sob
O mastro sem folhas, onde não iluminam a noite
Os dias de festa da cidade,
Nem a lira nem a dança nativa.


Mas agora foram pra os Índios
Os homens,
Além no cume alteroso
Junto aos vinhedos, onde
Desce o Dordogne
E juntamente com o soberbo
Garona largo como um mar
O rio acaba. Mas o mar tira
E dá memória,
E o amor também prende diligente o olhar.
Mas o que fica, os poetas o fundam.

(Hölderlin, Poemas, Prefácio, selecção e tradução de Paulo Quintela, 2ª edição revista e muito ampliada, Atlântida. Coimbra, MCMLIX, 381-385. Composto provavelmente entre 1803/04, e publicado pela primeira vez no anuário de poesia de Seckendorf de 1808. Muito obrigada, Ana & Isabel!)