quinta-feira, 11 de maio de 2017

Uma elegia

A CHUVA JOGA À CORDA NAS JANELAS DE MAPUTO, MEU CARO BB
Não sei se foi de mansinho ou se o biltre
do anjo te levou na canastra. Mas não cheguei
a contar-te o flash-back com o meu tio linotipista 
que ao megafone te chamava, “pede-se a presença
no refeitório do bandarilheiro Armando!”. 
Quarenta anos depois, em entrevista
que te fiz, ébrios como aqueles centauros
que se mergulhavam no mel, segundo o Plínio,
descobri-te humilde, inseguro, ansioso
por confidenciares que tomavas o teu romance
por uma bodega – ou menos nutrido que qualquer bodegón 
de castiço andaluz – e que a vida tem sótãos &
armadilhas para os bandarilheiros que anseiam
tornar-se "matadores". Também eu, também a mim,
meu querido Armando (no 25 de Abril estava
a tentar safar o couro do açougueiro Dias 
– atraía-me filha, a justiça não usava rímel ¬-
em risco de ser linchado porque, clamava a turba,
oferecia os piores chouriços aos nossos libertadores)
me calhou descobrir aos cinquenta e oito
que a poesia simplesmente me evadia do trabalho físico
e que a escolhi contra os cem metros obstáculos
ou o Cristo nas argolas e na mira de que ela obtivesse
junto das miúdas o efeito hílare do papagaio
que repetisse “o mangalho”em trinta e duas línguas.
Se depois melhorou (o que eu duvido) 
foi porque a caneta exercida a (torr)esmo
pode vir a pesar tanto como o arado
que sulca a terra pedregosa e ai o alheado labor
do espírito desata a transpirar
e topa que lhe aderiram à lâmina detritos de osso,
nódulos de sangue e as garatujas em sémen
de cães que se imitam na fosforescência
e rabiam em círculos num truncado horizonte de sílabas,
pelo fito vão de lamber a própria piça
ao primeiro espanejar do vento
nas asas do anjo. Nada
de muito dignificante, meu caro, cacos
peneirados na rede da astúcia,
mais vaidade que polpa
no momentâneo trajecto entre os astros.
Desta vez atingiu-te a cornada e pressinto
que dispensavas ter já o céu por vizinho,
pois preferias o riso, o escandido relance
da vizinha que te media o papillon;
sentires que a tua voz cava
subia ao terraço para te indignares com palavras
que atiravas como brasões à multidão.
Partilhámos algumas garrafas, trocámos acenos
e ouriços (o fado e outras despercepções
nos separavam) mas a maldita usura
do tempo… igualou-nos.
A chuva joga à corda nas janelas de Maputo,
e, arreliado, ouço o baque-baque
das bátegas a acordar o tique-taque
que me constela as veias.
Isto anda tudo ligado, diria o Guerra Carneiro,
outro iracundo capaz de uma gentileza milenária.
Chove nas vidraças, certamente um breve
aguaceiro, como tu, como eu, como nós,
os encanzinados que tristemente
não chegam a integrar o cartel dos "matadores".

António Cabrita
(Publicado no seu mural de Facebook em 11-05-2017.
A lembrar Baptista-Bastos, falecido dois dias antes.)